domingo, 6 de fevereiro de 2011

estréia

homem sentado em frente a uma mesa de trabalho, concentrado, digitando no computador. entra uma mulher. senta-se na mesa, ao lado dele. o homem não a olha.

ele: o que você quer?
ela: te dar um presente. pode?
ele: o que é?
ela: não faz mal se estiver desembrulhado, não é?

a mulher tira devagar a calcinha e joga na frente dele, em cima do teclado.
ele a olha sério.

ela: pronto, agora desembrulhei.


a cena permanece congelada enquanto as luzes se apagam. no canto direito surge uma moça que fecha um caderno e sorri enquanto o contrai ao peito. olha o público. se assusta. diz:

ok, é duplamente ruim: brega e piegas, mas pelo menos há de funcionar!


sábado, 10 de julho de 2010

texto recusado.

a mensagem das violetas: o ironismo lírico de florbela espanca



descrição da imagem: florbela ainda jovem, sentada, lê o livro que tem nas mãos, por cima dessa imagem vê-se os versos de uma poesia.
fonte da imagem: http://purl.pt/272/2/




o estudo da obra da poetisa portuguesa florbela espanca (1894 – 1930) ressalta a abordagem lírica de temas comuns à problemática dita feminina, como o amor, a paixão, os desejos e a própria condição de mulher. em sua poesia, mais reconhecida e valorizada do que os contos, transbordam sentimentos, desejos, amores e desassossegos representados por palavras vivazes e dançantes no teatro da sua linguagem insurreta. pretendo destacar a inadequação e o incomodo causado pela abordagem da poesia florbeliana dedicada não ao reconhecimento da sua singularidade e importância na literatura de língua portuguesa, mas principalmente à suposta representação do feminismo que sua obra assumiria. embora aparentemente relevante frente à semântica dos seus versos, essa consideração de que florbela espanca traduziria a expressão do feminino, no mínimo, reduz o seu caráter original.

é consenso que, enquanto estava viva, não se contentou com as definições sociais e morais existentes que queriam lhe dizer como deveria ser e agir. não quis determinar a conduta feminina (nem de revolta nem de aceitação passiva às determinações com destacada assimetria entre os gêneros, enfrentadas na época) apenas criou uma forma própria de se contar, analisando a contingência dos fatos da sua vida, sem outorgar a explicação delas a uma instância maior do que a própria singularidade e eventualidade. denunciou de forma sistemática e requintada a superficialidade das relações humanas e a precariedade de suas instituições como o casamento, a família, a religião. mesmo após sua morte, os seus versos eram tidos como avessos à moral e aos bons costumes do sistema político instituído. por isso a profanação de sua história foi algo a que os defensores da ditadura de salazar também se dedicaram. quem foi essa poetisa que, mesmo após a sua morte, suscita a revolta de sérios homens do governo português?

os limiares de articulação entre o que um ser contingente quis fazer de si e as dúvidas e retaliações que enfrentou nesse processo fizeram de florbela muito mais do que uma simples poetisa romântica. cresceu sabendo-se filha ilegítima. foi uma das primeiras mulheres a freqüentar a universidade. casou-se três vezes em uma época em que o divórcio representava um tabu social. não teve filhos. publicou às próprias custas quase todos os seus livros. perdeu o único irmão num terrível acidente. sofreu, amou, escreveu, se matou. a narrativa cheia de percalços em rimas demonstra bem o que passou em vida: não se satisfez com o já estabelecido nas descrições em voga. queria mais. e para isso, precisaria criar seu próprio vocabulário permeado de novas definições, para atender às suas próprias ânsias:

(...) e os meus versos e a minha alma, e os meus sonhos, e os montes e as rosas e a canção dos sapos nas ervas úmidas e a minha charneca alentejana e os olivais vestidos de gata borralheira e o assombro dos crepúsculos e o murmúrio das noites... então isso não é nada. napoleão de saias, que impérios desejas? que mundos queres conquistar? estás, decididamente, atacada de delírios de grandezas! (espanca, f. 1981, p. 49)


descrição da imagem: close da boca de florbela, por cima dessa imagem vê-se os versos de uma poesia.
fonte da imagem: http://purl.pt/272/2/


a força e genialidade da poetisa, no dizer conceitual de h. bloom (1991), evidenciam-se pelo modo como questionou e redescreveu seus antepassados literários, homens e mulheres, sem se intimidar com as mordaças sociais que certamente a sufocavam e angustiavam. apesar delas, em sua poesia-confissão contou-se sem se prender aos mecanismos inculcadores dos limites a que até então uma moça de bem deveria se estender e uma mulher casada deveria se contentar. tudo isso é aqui exposto não como validação comum à identificação da florbela personagem ímpar de uma suposta essência do feminismo, prenhe de questionamentos anacrônicos e deturpados. essas características, porém, delimitam o seu caráter ironista, termo defendido pelo filósofo richard rorty (2007) e pressupõe a assunção de uma postura voltada não para a defesa e manutenção dos paradigmas da tradição vigente, mas para a recriação destas heranças, o ironista perceber-se, através dos ditos dos seus antecessores, num processo histórico não determinado embora não ultra valorize os termos com que estes se referiram a si mesmos e à história humana e à filosofia.

a partir de uma linguagem própria, singular e sem pretensões metafísicas de dirimir outras possibilidades de resposta, reconhecendo a contingência em que se desenvolve, florbela expõe metáforas que redescrevem em versos sua vida de mágoas e dores valendo-se de uma identificação angustiada e conflituosa com sóror mariana alcoforado (1640 – 1723), freira alentejana cuja escrita identifica-s como antecipação do romantismo: mesmo sem resposta, escreveu cartas destinadas a um oficial francês que fora obrigado a voltar para seu país, após a descoberta do envolvimento íntimo que tiveram às escondidas dentro do convento onde ela vivia. florbela herda de sóror mariana o sentimento escandalosamente apaixonado, a situação social e religiosa que a subjuga, ambas dedicam-se à escrita poética de suas desventuras, desesperadas com o reconhecimento do contingencial de que fazem parte, na tentativa de desnudar essa teia do acaso e de incertezas que as envolveram. mas essa identificação dá margem, em contra partida, a uma “angústia de influência” em florbela que a faz querer vencer e superar a maternidade poética que alcoforado representa, numa paráfrase da teoria de bloom (1991). sóror mariana alcoforado faz parte, ainda que de modo idiossincrático, da tradição literária que outorga à mulher papel limitado e singelo das cantigas trovadorescas, idealizando os sentimentos e relações humanas de modo destoante da lírica florbeliana, como percebemos neste poema, do livro a mensageira das violetas (1999):

para quê?!

tudo é vaidade neste mundo vão...
tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
e mal desponta em nós a madrugada,
vem logo a noite encher o coração!

até o amor nos mente, essa canção
que nosso peito ri à gargalhada,
flor que é nascida e logo desfolhada,
pétalas que se pisam pelo chão!...

beijos d´amor? pra quê?!... tristes vaidades!
sonhos que logo são realidades,
que nos deixam a alma como morta!

só acredita neles quem é louca!
beijos d´amor que vão de boca em boca,
como pobres que vão de porta em porta!...


em toda a sua obra, revela-se a consideração da não eternização dos amores jurados mesmo com sinceridade, a ruptura com as expectativas religiosas e metafísicas, ainda que de modo não ostensivo, do erotismo dito sem culpa, por mais que mantivesse em muitos sonetos a mística da freira apaixonada e não correspondida.
ao construir a sua vida de poetisa independente, uma vez que o rompimento com a tradição literária portuguesa marca também a sua dificuldade de publicar e ser reconhecida dá a florbela a condição de elevar suas concepções iniciais principalmente no tocante ao paradigma feminino instituído. como não se encaixava em nenhuma definição aceita do que uma mulher deveria ser, sentia-se deslocada e sozinha, mesmo assim não se rende à autoridade alheia. como foi dito, casou-se três vezes mesmo sendo o divórcio algo incomum, não teve filhos. prendia-se prendia ao processo criativo e produtivo da escrita. não era religiosa. travou contato com grandes intelectuais, críticos literários da época, mesmo assim renunciou qualquer tipo de filiação às idéias e figuras tidas como maiores do que si mesma, uma vez que percebia a finitude da sua própria vida e das instâncias sociais que valorizavam sobremaneira o casamento, por exemplo.
na época de florbela, como bellodi destaca:

ser poeta é, pelo menos em princípio, atividade masculina. ser poeta é ser reflexivo, ser intelectualizado, é dar valor e importância especiais aos sentidos, aos sentimentos, e refletir sobre eles. cabia ao homem, tradicionalmente, fazer essa reflexão. florbela espanca assume a persona da poetisa, vivendo-a intensamente. isso lhe cria conflitos e dificuldades. (2005, p. 20)

o rompimento com as expectativas habituais da sociedade portuguesa de então resulta de um processo longo e contínuo de assunção de um vocabulário final indiferente ao senso comum da época, mas fiel à ansiedade de redescrever-se. a sobrevivência em um mundo masculino como a poesia se faz a partir de esforços múltiplos: recebe críticas violentas, é desprezada e precisa financiar a publicação de seus livros. mesmo assim, sem outorgar ao alheio qualquer autoridade maior do que si mesma, florbela insiste em recontar-se: é mulher, no entanto, não lhe interessa a dedicação àquilo com que tradicionalmente as mulheres foram limitadas e se limitaram. ela não se envolve na pesquisa metafísica de busca da essência do ser feminino, apesar de abordar constantemente as questões relativas a seu sexo. tem seus gostos, suas preocupações, seu erotismo como qualquer mulher, embora os perceba distantes dos das demais

eu não sou, em muitas coisas, nada mulher: pouco de feminino tenho em quase todas as distrações da minha vida. todas as ninharias pueris em que as mulheres se comprazem, toda a fina gentileza duns trabalhos em seda e oiro, as rendas, os bordados, a pintura, tudo isso que eu admiro e adoro em todas as mãos de mulher, não se dão bem nas minhas apenas talhadas para folhear livros que são verdadeiramente os meus mais queridos amigos e os meus inseparáveis companheiros (dal farra, 2002, p. 79)

desta maneira, entendo que ela refugiou-se num mundo poético em que cantou temas avessos ao cânone consolidado que se identifica com a universalização das problemáticas que deveriam interessar aos filósofos e literatos, a influência incontestável do cristianismo, a concepção de verdade como luz da razão, e a supremacia desta no alcance da liberdade e da vida plena. florbela não é a encarnação do feminismo: era contingente, apenas quis redescrever sua vida, de mágoas e dores, a partir do próprio vocabulário poético. o que é este gênero feminino? o que o caracteriza? seja como for, florbela fugia dele: não era nem mãe, nem dona de casa, nem revolucionária. não quis assumir a história tradicional da perspectiva feminina, seja da auto contida e recatada, seja da lasciva e demoníaca. era mulher, apenas uma mulher que não se encontrava nas descrições tradicionais, por isso teve que inventar um modo de se dizer, e fez desse modo a sua própria vida.

a sua angústia em se reconhecer como participe de uma história que contava com o emudecimento das mulheres a fez tentar responder e superar os escritos de sóror mariana, de acordo como revisionismo dialético de h. bloom (1991), ambas as autoras exploram sutilezas de um amor não correspondido, suas conseqüências. florbela já conhecia a influência que mariana alcoforado gozava a sua época além portugal, assume a teatralidade das suas emoções, mas a supera porque além de enxergar a própria vida a partir de uma lente ironista, desprendendo-se, portanto do jugo da tradição e criando ela própria uma nova tradição lírica, exercendo influência sobre outras poetisas e poetas românticos posteriores.


descrição da imagem: a assinatura: bela
fonte da imagem: http://purl.pt/272/2/



referências

bellodi, zina c. florbela espanca. são paulo: global, 2005.
bloom, harold. a angústia da influência: uma teoria da poesia. rio de janeiro: imago, 1991.
espanca, florbela. diário do último ano. lisboa: bertrand, 1981, p. 49

____________________. a mensageira das violetas: antologia. seleção e edição de sergio faraco. porto alegre: l&pm, 1999.

farra, maria lúcia dal. afinado desconcerto (contos, cartas, diário). são paulo: iluminuras, 2001
_________________. florbela erótica. cadernos pagu n.19. unicamp, 2002, p 91-112.

nemésio, vitorino. florbela. diário popular, lisboa, 29 de junho de 1949. in: bellodi, zina c. florbela espanca. são paulo: global, 2005.

rorty, richard. contingência, ironia e solidariedade. são paulo: martins fontes, 2007.


domingo, 29 de novembro de 2009

leocádia

afixiaram meus nervos, afogaram meu corpo, comeram meu seio,

ainda assim,

o ironismo, os cansaços, as faíscas em verso da liturgia feminina de que participo

reacenderam numa pluralidade de hinos

que a partir de agora não escondo mais.